CAPÍTULO III

QUAL O ESTADO QUE QUEREMOS?

CAPÍTULO III

Para o Banco Mundial, em seu Relatório de Desenvolvimento Mundial de 2017, é necessário repensar a governança pública a partir de quatro resultados desejáveis, uma espécie de síntese última dos fins estatais: segurança, crescimento, equidade e sustentabilidade.

Partindo dessa premissa e com esses objetivos em mente, o Relatório relaciona três princípios norteadores de uma nova perspectiva de governança: 

i) Considerar não somente a forma das instituições, mas também suas funções;

ii) Considerar não somente a capacitação, mas também as assimetrias de poder; e

iii) Considerar não somente o estado de direito, mas também o papel da lei. (Banco Mundial, 2017, p. 29).

Apontados esses princípios, o Relatório conclui que um dos desafios que uma boa governança permite enfrentar é a solução de problemas que afetam as funções da instituição que são necessárias para garantir a eficácia das políticas, quais sejam: comprometimento, coordenação e cooperação.

Levando essas funções em consideração, pode-se dizer que a política de governança está inserida em uma perspectiva de Estado na qual há constante avanço institucional, medido por indicadores de planejamento confiáveis, em todos os Poderes e entes federativos.

3.1 CONSTANTE AVANÇO INSTITUCIONAL

Em que pese existir uma acirrada e longeva disputa sobre qual é o melhor modelo de Estado – o que envolve discussões sobre o seu papel, sua formatação e suas prioridades –, há um reconhecimento quase consensual de que o Estado deve buscar sempre se aprimorar.

Esse avanço institucional pode ser oriundo de racionalidade, hierarquia e análises de custo- benefício, se a perspectiva adotada for a teoria clássica burocrática (weberiana). Pode ser também focado na desagregação, na concorrência intragovernamental e nos incentivos pecuniários vinculados ao desempenho, se a visão estiver ligada ao paradigma gerencialista (new public management – NPM). Ou, ainda, pode estar relacionado às ideias de integração, colaboração e processo decisório inclusivo, se a base teórica puder ser enquadrada na gestão pública pósNPM (Cavalcante, 2017).

O fato é que cada um desses modelos teóricos tem características que podem ser observadas na administração pública no Brasil atualmente: não há uma superação metodológica, mas a coexistência de diferentes estratégias e enfoques.

O desafio do Estado, nesse sentido, é o de coordenar contradições e permitir que os avanços institucionais sejam compatíveis com as necessidades do contexto – preferencialmente, futuro. Esse processo, por sua vez, depende de governança.

A ideia de que uma reforma administrativa geral e irrestrita, que almeje solucionar todos os problemas da administração pública com um conjunto predefinido de prescrições normativas, é o oposto do que se propõe com a governança.

 

O paradigma da governança pressupõe a implementação de um constante e gradual processo de melhoria institucional, no qual são tratados problemas como a assimetria de poder, dando ao cidadão maior capacidade de colaborar no processo decisório, e a legitimidade da atuação pública, reconstruindo a relação de confiança entre cidadãos e instituições públicas.

Esse paradigma, portanto, não pressupõe a legitimidade estatal como um dado estático e desvinculado de sua atuação: o reconhecimento da sociedade é o melhor instrumento para medir o avanço institucional. Não por outro motivo, a OCDE (2002, p. 10, tradução nossa) conclui que “o sucesso da governança pública vai ser julgado em última instância não pelos governos ou pelas organizações internacionais, mas pelos cidadãos”.1

Note-se, no entanto, que a política de governança não instaura esse paradigma na gestão pública brasileira em definitivo, nem supera todas as características da administração que podem ser atribuídas a outros modelos teóricos. A coexistência de paradigmas é própria da complexidade institucional. Seu papel é o de inaugurar uma forma mais consistente de coordenar a atuação pública, mantendo a flexibilidade necessária para correções de rumos e de prioridades.

 Portanto, apesar de ter uma abordagem prescritiva, o Decreto nº 9.203, de 2017, tem como principal elemento a criação de um arcabouço institucional capaz de direcionar a atuação estatal por diferentes contextos, permitindo que a administração pública federal caminhe gradualmente no sentido de incorporar e aplicar as melhores práticas de governança.

 

3.2 INDICADORES DE GOVERNANÇA

A utilização de indicadores que remetam ao cumprimento das funções institucionais – com mecanismos de fortalecimento do comprometimento, da coordenação e da cooperação – é um importante passo para a adoção de boas práticas de governança.

Ao comparar instituições a partir de um indicador, viabilizando diagnósticos personalizados, é possível tornar mais célere o processo de disseminação de boas práticas de governança. Ao tomar conhecimento de suas fragilidades relativas, o próprio órgão pode se concentrar em resolver os gargalos e tratar suas ineficiências.

Essa medição, no entanto, tem algumas limitações. A primeira e mais importante é conceitual. A fixação de uma definição adequada é o primeiro passo para medir a governança (Fukuyama, 2013), mas em poucos campos a diversidade conceitual é tão grande. A atribuição mais ou menos discricionária de um significado para a governança se reflete nos quesitos que serão utilizados para medi-la. Em outras palavras, os indicadores existentes partem de conceitos próprios e analisam um conjunto personalizado de fatores e variáveis.

BOXE 6 – DESAFIOS NO USO DE INDICADORES DE MATURIDADE INSTITUCIONAL DE ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS

A governança eficaz depende, entre outras coisas, da construção de organizações eficazes dentro do setor público. Além de ter servidores públicos motivados e bem treinados, esses indivíduos devem ser organizados em estruturas que promovam a melhoria do desempenho e minimizem as disfunções geralmente associadas à burocracia pública. Além disso, essas organizações devem ser conduzidas de forma eficaz por indivíduos que possuam as habilidades necessárias para que elas funcionem sem problemas.

O problema é que medir todos esses atributos das organizações é difícil.

Há uma série de indicadores para a “motivação no serviço público” (Vandenabeele, Brewer e Ritz, 2014), por exemplo, que tentam avaliar o comprometimento dos servidores em servir o público – mas, apesar de importantes, esses indicadores não capturam plenamente como os indivíduos funcionam dentro da burocracia. Da mesma forma, inúmeras tentativas foram feitas para medir a liderança, mas não há concordância em relação aos resultados no que tange ao setor público.

Medir os efeitos da estrutura das organizações na melhoria do seu desempenho talvez seja ainda mais difícil. Primeiro, alguns desses efeitos dependem da cultura, de modo que organizações muito hierárquicas podem funcionar bem em alguns contextos, mas estruturas mais igualitárias podem ter uma performance melhor em outras. A depender da tarefa executada pela organização, o tipo de estrutura também pode afetar o seu desempenho. Poderíamos estender a lista de fatores envolvidos, mas o ponto básico é que existem inúmeras contingências que afetam a performance de uma organização pública.

Além disso, enfatizar a medição do desempenho organizacional geralmente leva a resultados bastante perversos. Quando há metas de desempenho, os indivíduos trabalharão nessas metas, em vez de necessariamente executarem seus trabalhos de maneira mais abrangente. Um dos exemplos comuns desse comportamento é o fato de os professores “ensinarem para a prova” em vez de oferecer uma educação mais abrangente para os alunos. Sempre queremos medir a performance, mas devemos ter cuidado para não diminuí-la ao tentar melhorá-la.

Nesse sentido, é possível fazer uma comparação entre os órgãos a partir do índice de governança pública, um dos componentes do índice integrado de governança e gestão (iGG) desenvolvido pelo TCU. No entanto, isso não significa que o indicador seja adequado para medir a implementação da política de governança, já que os conceitos e variáveis envolvidos são diferentes em alguns pontos. Para que pudesse servir de diagnóstico para a política, o iGG precisaria incorporar seus principais elementos, variáveis e conceitos – ou seja, seria necessário um alinhamento conceitual.

Não obstante, o fato de o iGG ser um indicador consolidado, com largo histórico temporal e baseado em uma metodologia constantemente aprimorada, acaba tornando contraproducente, em um momento preliminar, a criação de um novo indicador pelo governo federal.

FOTO_CAP_3_pg_35.jpgNesse sentido, na condução da política de governança, é possível que alguns dos resultados do iGG sejam levados em consideração, notadamente quando o elemento avaliado seja considerado compatível com os objetivos e diretrizes gerais da política. Isso significa que uma avaliação ruim no indicador do TCU não necessariamente levará a uma pronta atuação do Comitê Interministerial de Governança.

Por fim, é importante registrar que o iGG alcança órgãos que não estão submetidos à política de governança – que não se restringe à administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Esse alcance amplo, no entanto, não é exatamente um problema, já que a política pode vir a ser estendida para os demais Poderes e entes federativos (ver item 3.3).

Outros indicadores cuja aplicação pode ser útil para monitorar e avaliar os resultados da política de governança são os Indicadores Globais de Governança (Worldwide Governance Indicators – WGI), desenvolvidos pelo Banco Mundial. Trata-se de uma iniciativa que busca medir a evolução dos modelos de governança em mais de duzentos países, preferencialmente em períodos de tempo mais longos, e permitir a comparação entre as suas performances2.

O WGI é uma compilação das percepções de um grupo muito diversificado de entrevistados, coletadas em grande número de pesquisas e outras avaliações de governança entre países. Para facilitar sua organização, o indicador é baseado em seis dimensões de governança:

i) Voz e Responsabilidade;

ii) Estabilidade Política e Falta de Violência;

iii) Eficácia do Governo;

iv) Qualidade Regulatória;

v) Estado de Direito; e

vi) Controle da Corrupção.

Essas dimensões de governança guardam, em graus diferentes, relação com os princípios e diretrizes de governança estabelecidos no Decreto nº 9.203, de 2017 (ver capítulo IV) e, portanto, estão alinhadas com a política de governança do governo federal. Essa relação permite, inclusive, que o indicador seja utilizado como referência para o planejamento estratégico do Estado e, por essa razão, foi definido como um dos indicadores para o eixo institucional nos estudos preparatórios da estratégia nacional de desenvolvimento econômico e social (ver item 3.3).

Ademais, como já ressaltou o Banco Mundial, os indicadores reforçam que a boa governança é fundamental para o desenvolvimento. O crescente reconhecimento da ligação entre boa governança e desenvolvimento bem-sucedido, como sugerem evidências empíricas, justifica por si só o monitoramento da qualidade da governança dos países ao longo do tempo.

Por fim, vale reforçar que a utilização de indicadores deve ser feita com moderação. Há sempre o risco de que eles induzam formas organizacionais predefinidas, como se a mera conformidade a estes padrões organizacionais pudesse resolver os déficits de governança existentes. Nesse sentido, é importante manter o espaço para a realização de diagnósticos próprios e para a busca de soluções inovadoras, específicas e contextualizadas.

 

3.3 GOVERNANÇA COMO UM ESFORÇO DE TODOS

Embora a própria noção de governança não comporte segmentações, já que as diferenças entre os Poderes e os entes federativos não alteram a natureza de suas respectivas atuações, a política de governança instituída por meio do Decreto nº 9.203, de 2017, é restrita ao Poder Executivo federal (administração direta, autárquica e fundacional).

Os princípios constitucionais da separação dos Poderes e da autonomia federativa impediriam que um ato infralegal alcançasse todas instituições públicas nacionais. No entanto, no Projeto de Lei nº 9.163, de 2017, essa extensão foi prevista, para que todos os demais Poderes e entes federativos sejam orientados pelo mesmo conjunto de princípios e diretrizes que norteia a política de governança no Poder Executivo federal.

Espera-se, dessa forma, que os mesmos objetivos que orientam a política de governança do governo federal sejam seguidos em outras instituições públicas por todo o país, observadas as particularidades de suas estruturas e missões. Isso permitirá a criação de redes de boas práticas de governança, que contemplem objetivos e diretrizes comuns, facilitando a integração e a coordenação de serviços públicos e promovendo o desenvolvimento regional.

Outro elemento fundamental para melhorar a governança multinível3 é o aprimoramento do planejamento estratégico estatal, que pode dar maior coerência e previsibilidade para a atuação pública – e, com isso, facilitar a integração de políticas e a observância de metas compartilhadas, como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).

O Projeto de Lei nº 9.163, de 2017, propõe essa melhoria. Lançada em 2018, sua principal novidade, que fortalecerá a coerência de políticas e programas, é a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, instrumento de longo prazo – doze anos – que orienta a edição de planos nacionais, setoriais e regionais e representa a dimensão estratégica do plano plurianual, elaborado a cada quatro anos (ver figura 1).

A primeira versão dos estudos preparatórios, que buscou contemplar um plano para o período de 2020 a 2031, foi submetida à consulta pública em junho de 2018. Tendo como diretriz principal “elevar a renda e a qualidade de vida da população brasileira com redução das desigualdades sociais e regionais”, a proposta foi dividida em cinco eixos: econômico, institucional, infraestrutura, ambiental e social.

Cada eixo conta com indicadores nacionais e internacionais, que permitem comparar a situação atual do país com a que se estima chegar em doze anos. Além dos eixos, nos quais se apontam as medidas necessárias para o alcance das metas no longo prazo, a estratégia nacional apresenta uma avaliação do cenário macroeconômico, das megatendências mundiais, dos riscos de implementação das ações e das medidas mitigadoras.

Todos esses elementos, assim como as diretrizes e os indicadores, fazem parte de um instrumento não estático. A estratégia nacional, como consta do projeto de lei4 , pode ser revista em duas situações:

i) ordinariamente, a cada quatro anos, por ocasião do encaminhamento do projeto de lei do plano plurianual; e

ii) extraordinariamente, na ocorrência de circunstâncias excepcionais.

Além de garantir que o planejamento reflita as opções democraticamente estabelecidas pela população, a maleabilidade do instrumento permitirá a adaptação às mudanças inesperadas de contexto.

 

FIGURA 1 – ESTRUTURA DO PLANEJAMENTO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL EQUILIBRADO

Figura 01

 


1. “First, the success of public governance will be ultimately be judged not by governments or international organisations, but by citizens.” [voltar]

2. Mais detalhes sobre a metodologia utilizada no WGI, bem como seus resultados, estão disponíveis em: http://info.worldbank.org/governance/wgi/#home [voltar]

3. Governança multinível é aquela que envolve diferentes níveis de governo. Segundo a OCDE (2017a, p. 29), a existência de um contexto de descentralização – como no Brasil, com os entes federativos tendo atribuições e deveres distintos – gera uma relação de dependência, e, a partir disso, uma série de lacunas. Para tentar preencher esses espaços, os países utilizam mecanismos compulsórios (como as leis) ou facultativos (como plataformas para discussão), que ajudam a preservar a coerência da construção de políticas multinível. [voltar]

4. O PL 9163/2017 foi apensado ao PL 4083/2015 em março de 2019. [voltar]

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