CAPÍTULO II

PARA QUE SERVE UMA POLÍTICA DE GOVERNANÇA?

CAPÍTULO II

O Decreto nº 9.203, de 2017, alterado pelo Decreto nº 9.901, de 8 de julho de 2019, instituiu a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Entender as razões que justificam a instituição de uma política específica para orientar a governança pública é fundamental para não se afastar, na condução dessa política, dos objetivos que lhe deram origem.

Nesse sentido, as principais motivações para criação da política de governança foram: i) a necessidade de se fortalecer a confiança da sociedade nas instituições públicas; ii) a busca por maior coordenação das iniciativas de aprimoramento institucional; e iii) a utilidade de se estabelecer patamares mínimos de governança.

2.1 FORTALECER A CONFIANÇA NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS 

Um dos problemas gerados pela inobservância de boas práticas de governança – e, talvez, o principal deles – é o da perda de confiança da sociedade na instituição.

Essa confiança é o elemento fundamental da legitimidade da atuação pública1. Para o Banco Mundial, essa legitimidade deriva de três fontes: i) a constante entrega de resultados previamente pactuados; ii) a percepção de que as políticas e as leis foram desenvolvidas e implementadas de forma justa e imparcial; e iii) a autoridade gerada pelo compartilhamento de um conjunto de valores e costumes entre os indivíduos e o governante (Banco Mundial, 2017).

Portanto, uma atuação pública deslegitimada tende a gerar políticas e regras com um custo maior de implementação, já que a adesão voluntária fica comprometida. Isso afeta a confiança do cidadão na instituição e alimenta o ciclo vicioso de desconfiança recíproca, que fomenta a burocracia e a desconformidade.

Assim, se um órgão, objetivando combater a sonegação fiscal (desconformidade), estabelece um conjunto extenso de regras tributárias consideradas excessivas pelos contribuintes (burocracia), a tendência é que a adesão voluntária seja baixa, gerando mais desconformidade – que, por sua vez, é frequentemente enfrentada com mais burocracia. Segundo a OCDE:

A capacidade de resposta está ligada à confiança no governo, que, por sua vez, é essencial para incentivar a cooperação e o cumprimento das leis e regulamentos. Existe, portanto, uma relação recíproca entre a confiança pública nos governos e suas organizações associadas e a governança responsiva2  (United Nations, 2015, p. 46, tradução nossa).

O rompimento desse ciclo de ineficiências e a retomada da confiança do indivíduo nas instituições é fundamental para que o país alcance resultados sustentados em termos de crescimento econômico, distribuição de renda e segurança.

E isso não é possível sem a adoção de boas práticas de governança.

Portanto, um dos principais papeis da política de governança é garantir que a atuação pública seja tida como legítima pelo cidadão, de forma a fortalecer o cumprimento voluntário de regras sociais e a reduzir a necessidade de controles mais rígidos e burocráticos.

 

Uma sociedade saudável passa pela ideia de um Estado cujas instituições entregam os resultados previamente pactuados a partir de um processo que mitiga as assimetrias de poder e permite a construção coletiva de objetivos e prioridades.

BOXE 3 - A IMPORTÂNCIA DA LEGITIMIDADE

Para um governo ser bem-sucedido é necessário que tenha legitimidade. Ou seja, ele exige que os cidadãos aceitem que os arranjos institucionais são apropriados para eles e que essas instituições farão o que é certo na maior parte do tempo. Assim, quanto mais legitimidade tiver, maior é o seu espaço para agir. Pode-se governar por curtos períodos de tempo sem legitimidade por meio de medidas coercitivas, mas isso é caro – e provavelmente reduzirá ainda mais a legitimidade.

Geralmente pensamos em governos que alcançam legitimidade por meio de procedimentos. Se eleito em uma eleição livre e justa, a maioria dos cidadãos considerará que ele tem legitimidade. Além disso, se os processos pelos quais as leis são feitas e aplicadas forem constitucionais e também forem considerados justos, as leis serão legítimas. Essas bases processuais de legitimidade são importantes, mas não contam toda a história da capacidade de governança do setor público.

Além dos aspectos processuais, o setor público também deve pensar sobre os aspectos substantivos da legitimidade. Existem agora evidências significativas de que ela se baseia, também, no desempenho do setor público na prestação de bens e serviços à população. Um bom governo é visto cada vez mais como fornecedor de boas escolas, bons cuidados de saúde, boas estradas e todos os outros serviços de que a sociedade depende.

Criar e manter a confiança do cidadão, portanto, requer não apenas o bom funcionamento dos governos de acordo com o que prevê a lei, mas também exige que o governo realize. Portanto, instrumentos como a gestão do desempenho tornaram-se mais importantes não apenas na gestão interna, mas também para justificar a própria existência do governo perante seus cidadãos. Os fardos colocados sobre os que tentam governar tornaram-se ainda mais pesados, e as expectativas dos cidadãos ainda maiores, mas a boa governança pode legitimar as ações do setor público.

 

 2.2 FOMENTAR A COERÊNCIA E PROMOVER A COORDENAÇÃO

Um dos problemas que a política de governança busca enfrentar é a falta de coordenação e coerência entre os diversos modelos de governança existentes no âmbito da administração pública federal. Duas premissas foram fundamentais para que não fossem gerados problemas ainda maiores a partir dessa tentativa de harmonização.

A primeira é a de que órgãos e entidades têm características, objetivos e níveis de maturidade institucional distintos. Dessa forma, não caberia uma solução única, a partir de um modelo genérico e universal. Por isso, foi privilegiada a construção de patamares mínimos de boa governança e a criação de um arranjo institucional flexível que permitisse adequações e particularizações.

A segunda premissa é de que é impossível estabelecer um modelo definitivo – pronto e acabado – de governança. A política, embora orientada por princípios e diretrizes predefinidos, direciona a atuação estatal para a construção permanente de boas práticas de governança. Com isso, reconhece-se a natureza dinâmica da governança e privilegia-se a adaptabilidade dos modelos adotados às mudanças de contexto.

Assim, a busca por um modelo de governança mais equilibrado, no qual as necessidades dos cidadãos são melhor identificadas e atendidas, deve ser permanente. O que funciona em um contexto pode não funcionar mais em outro. Por isso, boas práticas de governança não são receitas universais e atemporais, devendo ser constantemente reexaminadas, ainda que já tenham se provado exitosas.

 

Tendo essas premissas em mente, o Decreto nº 9.203, de 2017, traz mecanismos para garantir a coordenação e a coerência dos modelos de governança, tendo como eixo central o Comitê Interministerial de Governança (ver cap. IV). Com isso, também é possível encontrar soluções mais céleres para questões transversais, aumentando a capacidade de resposta dos órgãos responsáveis pelas políticas setoriais.

A percepção de que cada órgão tem um modelo de governança – ainda que não seja o mais equilibrado – e possui iniciativas meritórias – ainda que eventualmente desconectadas – não é nova. Na literatura especializada há diversos relatos de problemas estruturais de capacidade e desempenho nas instituições públicas, como o que se segue:

Iniciativas focadas, fragmentárias, incrementalistas e episódicas têm sua importância e necessidade, mas, no todo, geram efeitos residuais, insignificantes ou sem a devida sustentabilidade. [...] Apesar de avanços, a gestão pública ainda é excessivamente insulada, rígida, procedimental e desalinhada do beneficiário. Embora haja ilhas de excelência, as organizações públicas apresentam, em sua maioria, significativos déficits estruturais de capacidade e desempenho. A complexidade do problema da governança pública  no Brasil requer uma atuação integrada, imediata e em larga escala; uma mobilização ou esforço nacional de melhoria da gestão pública (Gomes e Martins, 2013, p. 54, grifo nosso).

Portanto, o foco na coordenação de iniciativas e na harmonização de práticas e procedimentos é importante para se evitar fragmentações (silos) e sobreposições e permitir que se desenvolva uma abordagem integrada de governo (whole-of-government approach).

BOXE 4 - BARREIRAS À GOVERNANÇA E À BOA GOVERNANÇA

Como tem sido implícito em todas as outras discussões sobre aspectos da governança, produzi-la não é fácil – e produzir boa governança é especialmente difícil. Apesar das boas intenções de muitos dos indivíduos e grupos envolvidos no processo de governança, esta pode falhar ou ser inadequada para os desafios enfrentados. A fim de reformar os processos de governança e produzir um governo eficaz, precisamos entender as barreiras que existem. Uma vez identificados, os profissionais envolvidos podem conceber os meios para superar as barreiras.

Talvez o problema crucial na governança seja a disjunção entre interesses privados e públicos. Indivíduos do setor público têm suas próprias preocupações e interesses – econômicos ou não – e podem persegui-los por meio de sua posição no setor público. A manifestação óbvia desse interesse próprio é a corrupção. Quando os indivíduos utilizam uma posição neste setor para ganhos pessoais, eles solapam qualquer conceito significativo de interesse público e desviam fundos e esforços para longe de objetivos públicos.

Embora possa parecer contraditório, a lei também pode ser uma barreira para a governança efetiva. Embora a lei seja obviamente importante como meio de legitimar a ação pública e garantir os direitos dos cidadãos, quando usada em excesso, pode retardar os processos do governo e produzir burocracias (red tape) aparentemente infinitas. O argumento aqui é para a simplificação de procedimentos, permitindo que a discricionariedade e a ponderação das alternativas possíveis sejam consideradas ao se avaliar o desempenho dos agentes públicos.

Uma terceira barreira potencial para a governança e para a boa governança é a ausência de um quadro de pessoal adequado. Os servidores públicos são talvez o maior recurso de um governo, mas eles precisam ser treinados para a tarefa, recompensados adequadamente e supervisionados de forma eficaz. Isso nem sempre ocorre e a boa governança requer a formação de servidores educados, treinados e motivados para atuar no serviço público. Carreiras qualificadas são essenciais na prestação de serviços públicos, mas estes também podem ser aprimorados por pessoas nomeadas, sem vínculo efetivo com a administração, para atividades de curto prazo para as quais são selecionadas por suas habilidades – e não apenas por suas filiações políticas.

Por fim, falhas na coordenação são uma fonte de disfunção no fornecimento de boa governança. O setor público é um conjunto complexo de organizações e programas, e tem interações igualmente complexas com o setor privado. A estrutura do governo geralmente mantém os programas isolados uns dos outros, de modo que tê-los trabalhando juntos em nome dos cidadãos pode ser um desafio. No entanto, para que o setor público trabalhe efetivamente, é preciso dar mais atenção à coerência da ação pública e à garantia de que os cidadãos recebam bons programas sem sobreposições e sem lacunas.

 

2.3 ESTABELECER PATAMARES MÍNIMOS DE GOVERNANÇA

 

Um dos problemas para o qual se buscou respostas na política de governança é o da grande diferença de maturidade institucional entre órgãos e entidades da administração pública federal.

FOTO_CAP_2_pg_26_MENOR.jpgA partir da premissa de que o cidadão não diferencia estruturas administrativas ou instâncias governamentais, buscou-se estabelecer um conjunto de medidas que reduz as fragilidades de modelos de governança menos desenvolvidos e permite a entrega de serviços menos discrepantes e mais conectados entre si.

Dessa forma, embora deixe grande espaço para que os próprios órgãos e entidades definam as suas boas práticas de governança, a política fixa alguns elementos mínimos a serem considerados por todos.

Esses patamares mínimos de governança envolvem a fixação de formas de acompanhamento de resultados, a busca de soluções para melhoria do desempenho das organizações (ver boxe 5) e a utilização de instrumentos de promoção do processo decisório baseado em evidências, conforme indicado no art. 6º, parágrafo único, do Decreto nº 9.203, de 2017.

BOXE 5 – NOMEAÇÕES PARA CARGOS EM COMISSÃO E FUNÇÕES DE CONFIANÇA

O zelo na seleção de ocupantes de cargos em comissão e funções de confiança na administração pública é uma das principais medidas para melhorar o desempenho das organizações, fomentando uma boa governança.

É possível encontrar na experiência internacional diversos modelos que incorporam um processo seletivo na condução aos cargos de alta direção. No Brasil, o contexto aponta para uma possível solução relativamente simples: estabelecer critérios eliminatórios e classificatórios para a ocupação de cargos de livre nomeação, ressalvando-se situações específicas.

A construção desses critérios deve levar em consideração os principais problemas oriundos de alocações equivocadas, sobretudo nos postos de direção que possam colocar em risco a confiabilidade e a capacidade de resposta daquela organização. Deve, igualmente, observar os limites impostos pelas previsões legais e constitucionais que norteiam a ocupação de alguns cargos. E, por óbvio, não deve se esquivar de uma solução para prevenir os desvios de integridade que possam permear determinadas atividades.

A possibilidade de não aplicar esses critérios em situações excepcionais, contudo, responde à necessidade de se preservar o espaço político de definição, pelas autoridades democraticamente eleitas, do perfil que entendem necessário para o cargo. A motivação para esse tipo de nomeação, segundo a OCDE, “pode não ser necessariamente o patronato ou o partidarismo, mas a necessidade de garantir afinidade suficiente e compatibilidade entre o Poder Executivo e as unidades secundárias de gestão nos ministérios e órgãos públicos” (OCDE, 2010, p. 228-229).

Evitado esse risco de completa supressão do poder político (e democrático) de definir as nomeações, é necessário também evitar que os parâmetros sejam tão rigorosos que acabem por distorcer a seleção, retirando do candidato mais apto ao exercício do cargo a chance de participar. Mesmo que não tão rigorosos, esses critérios também podem gerar distorções se acabarem restringindo a possibilidade de ocupação dos cargos a pessoas de determinadas carreiras ou organizações – é o risco de insulamento ou de feudalização que se mostra nocivo na busca do valor público.

Por fim, deve-se levar em consideração a transparência e a accountability como as principais aliadas da profissionalização da administração pública. O caminho baseado em listas extensas de regras minuciosas e em controles procedimentais rígidos tem eficácia limitada, contribuindo mais para a burocratização do processo do que para o resultado que se espera dele. Nesse sentido, eventual realização de processos seletivos, conforme a conveniência e a oportunidade, tende a ter melhores chances de contribuir para uma boa alocação de talentos nesses cargos de livre nomeação.

 

Assim, por exemplo, a aplicação do princípio da melhoria regulatória tem como consequência inexorável a adoção de um processo decisório baseado em evidências. A formulação de atos normativos deve ser realizada a partir de um conjunto de evidências que permita ao agente público identificar corretamente o problema a ser solucionado e dimensionar adequadamente a resposta regulatória mais apropriada.

A preocupação com esses elementos mínimos na política de governança também denota as principais dificuldades enfrentadas por órgãos e entidades da administração pública federal. O acompanhamento de resultados, por exemplo, é frequentemente realizado de forma não sistematizada, dificilmente consegue ter a extensão temporal necessária e, por vezes, não tem qualquer integração com outras iniciativas semelhantes. Não é difícil concluir que essas falhas impedem que os objetivos que justificam esse tipo de prática sejam atingidos, acarretando desperdício de recursos públicos.

O fato de essas falhas serem observadas em alguns órgãos e não em outros demonstra a necessidade de que a política defina compromissos mais rígidos para os primeiros e mais flexíveis para os segundos.

Dito de outra forma, o conjunto de regras estabelecido é calibrado de acordo com o nível de maturidade institucional da organização, de modo a tratar os gargalos e as ineficiências com prioridade.

 


1. A legitimidade é um dos princípios do impacto público, de acordo com o Centre for Public Impact, ou seja, é um dos componentes fundamentais para maximizar as chances de uma determinada política causar um impacto público. Ver Centre for Public Impact, 2016. [voltar]

2.“Responsiveness is linked to trust in government, which in turn, is essential for encouraging cooperation and compliance with laws and regulations. There is therefore a reciprocal relationship between public trust in governments and their associated organizations, and responsive governance”. [voltar]

 

Leia Mais

cap1.png


cap3.png