CAPÍTULO I

AFINAL, O QUE É GOVERNANÇA?

CAPÍTULO I

Governança.  Na administração pública, poucos termos são utilizados com tanta frequência e em contextos tão diferentes. Nos últimos anos, converteu-se em verdadeiro mantra para designar uma espécie de solução definitiva dos problemas na gestão pública e para o sucesso das políticas governamentais.

Empregar o termo com essa conotação ampla e intangível gera, no entanto, alguns problemas. O principal deles é deslocar a sua materialização para um plano inalcançável, transformando a governança em uma espécie de ideal inatingível, ainda que sempre desejável.

Este guia mostrará que a conceituação de governança pode ser um pouco mais complexa e que, mesmo quando se pretende aplicar o termo para designar um conjunto de soluções para um problema, alguns cuidados devem ser tomados.

1.1 CONCEITOS 

Governança é um conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade. O Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2017, (doravante, Decreto), alterado pelo Decreto nº 9.901, de 8 de julho de 2019, traz o conceito de governança para a administração pública.

Esse conceito, inspirado em uma publicação do Tribunal de Contas da União, Governança Pública: Referencial Básico de Governança Aplicável a Órgãos e Entidades da Administração Pública e Ações Indutoras de Melhoria (TCU, 2014), engloba alguns dos mecanismos considerados importantes para o sucesso de uma política de governança e reforça a importância da construção e da coordenação de políticas focadas no cidadão.

Embora não tenha maiores implicações jurídicas para a condução da política de governança, o conceito orientou a estruturação do Decreto e serve como ponto de partida para a formação de um consenso mínimo acerca do que é governança – com a indicação de um conjunto inicial de referências de boas práticas e a delimitação de um objetivo.

Assim, de forma mais objetiva, na condução da política de governança considera-se que governança pública compreende tudo o que uma instituição pública faz para assegurar que sua ação esteja direcionada para objetivos alinhados aos interesses da sociedade.

 

Esse consenso leva em consideração a multiplicidade conceitual e, principalmente, os objetivos da política de governança (vide boxe 1). Portanto, ainda que se possa considerar a governança como uma abordagem ou agenda de pesquisa interdisciplinar voltada a analisar o funcionamento de diversas dimensões do Estado1 , este guia parte da perspectiva estatal sobre o tema2.  Nesse sentido, o foco da política e, consequentemente, do guia estão no papel do Poder Executivo federal na criação de um ambiente institucional mais favorável à implementação de políticas que atendam aos interesses da sociedade.3 

Esse conceito mais objetivo, que efetivamente orientará a implementação da política de governança, permite fixar duas premissas importantes: i) a política é voltada para as instituições públicas federais e suas ações; e ii) cada órgão e cada entidade já possui um modelo próprio de governança pública.

 

BOXE 1 – HISTÓRICO DA POLÍTICA DE GOVERNANÇA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL

A proposta de criação da política de governança se originou da cooperação dos órgãos centrais de governo com o Tribunal de Contas da União. Para o TCU, era necessário editar um ato normativo que estabelecesse boas práticas de governança voltadas para a melhoria do desempenho de órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, bem como dos demais Poderes na esfera federal, a partir de três linhas centrais: liderança, estratégia e controle.

Com a missão de estabelecer um conjunto de boas práticas de governança que subsidiariam e direcionariam a atuação estatal, uma equipe de técnicos, à época, da Casa Civil, do Ministério do Planejamento, do Ministério da Fazenda e do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União prepararam dois atos normativos: o Decreto nº 9.203, de 2017, e o Projeto de Lei nº 9.163, de 2017, apensado ao Projeto de Lei nº 4.083/2015.

A ideia de concretizar uma política de governança surgiu da percepção de que era necessária uma condução integrada e coerente das diversas iniciativas setoriais isoladas de aprimoramento da governança. Para dar sustentação e unidade à política, foram utilizadas recomendações da literatura especializada e de organizações internacionais, notadamente da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que sintetizam as melhores práticas de governança. Tudo isso levando em consideração as principais fragilidades dos modelos de governança adotados no âmbito da administração pública federal.

BOXE 2 – AONDE O GUIA VAI TE LEVAR

O Guia da Política de Governança Pública é destinado aos gestores e autoridades responsáveis pela execução (alta administração e comitês internos de governança) e pela coordenação (Comitê Interministerial de Governança) da política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, instituída por meio do Decreto nº 9.203, de 2017, alterado pelo Decreto nº 9.901, de 8 de julho de 2019. Apesar da vinculação à política e ao decreto, o guia pode, ainda, ser útil para autoridades de outros Poderes e dos demais entes federativos.

Na primeira parte, além de explicar os objetivos e justificativas da política, esclarece seu conceito mais complexo: governança. Na segunda parte, o guia detalha os princípios e diretrizes de governança previstos no decreto, ressaltando seus respectivos conteúdos, e clarifica as funções dos principais atores e estruturas envolvidos na melhoria da governança pública.

Trata-se, portanto, de um instrumento essencial para a implementação coordenada e consistente da política. No entanto, o guia não vai abordar exaustivamente exemplos de boas práticas de governança, em função do reconhecimento de que estas somente podem ser consideradas adequadas em um determinado contexto. Assim, para que funcione como um instrumento estratégico e para evitar o anacronismo, o guia não pretende ser um repositório de boas práticas de governança – a função pode ser melhor desempenhada por instrumentos online, alimentados por meio de redes de governança e constantemente revisados.

O objetivo é que as instituições públicas federais, por meio de suas ações, construam um modelo mais adequado de governança pública – o que aproxima a política de uma estratégia de governança (CAPANO, G.; HOWLETT, M.; RAMESH, M., 2014.

Com frequência as instituições públicas realizam medidas voltadas ao aprimoramento de sua governança, ou seja, para que suas ações estejam efetivamente direcionadas para objetivos alinhados aos interesses da sociedade. Isso pode ser observado em cada revisão de processo de trabalho, avaliação de política pública, reformulação de objetivos e diretrizes, reestruturação organizacional, reorganização de procedimentos de atendimento, enfim, em cada ato praticado com o objetivo de melhorar a organização pública e torná-la mais capaz de atingir sua missão institucional.

Essas ações fazem parte de um modelo de governança – que pode, ou não, ser o mais adequado para o objetivo proposto. Portanto, a ideia de aprimorar a governança nada mais é do que a ideia de aprimorar a instituição, de prepará-la para melhor atender ao interesse público, de criar um ambiente institucional capaz de gerar e entregar resultados, de ter, por fim um modelo de governança mais adequado para o contexto.

 

Fixados o conceito e as duas premissas, é importante demonstrar de que forma a definição proposta pode ser interpretada a partir das abordagens que o Banco Mundial e a OCDE têm sobre o tema.

O Banco Mundial, em seu Relatório de Desenvolvimento Mundial 2017: Governança e a Lei, descreve governança como sendo um “processo por meio do qual atores estatais e não-estatais interagem para formular e implementar políticas dentro de um conjunto predefinido de regras formais e informais que moldam e são moldadas pelo poder” (Banco Mundial, 2017, tradução nossa).4 

FOTO_CAP_1_pg_21.jpgPortanto, ter um conjunto predefinido de regras formais que favoreça a formulação e a implementação de políticas e serviços públicos que de fato atenderão às necessidades da sociedade é estabelecer uma boa governança – ou, dito de outra forma, implementar boas práticas de governança. É, como já demonstrado, o que se pretendeu com a criação da política de governança.

Dessa maneira, a identificação das necessidades prioritárias da sociedade, o estabelecimento de objetivos institucionais e a elaboração de estratégias para atingir essas metas adentram no campo teórico da governança pública.

A definição dos interesses da sociedade não é algo fácil, sendo fruto de um complexo processo político. Cada instituição pública, em menor ou maior grau, contribui para a identificação e delimitação de quais interesses serão atendidos prioritariamente – que, mais tarde, deverão nortear a sua atuação. Ter o cidadão como parceiro nesse processo é fundamental.

Daí se diz que a escolha de quais interesses serão tutelados pelo Estado e de que forma serão buscados são elementos da arena política, na qual grupos e atores diferentes interagem e negociam a conformação do interesse público. É nesse contexto que a governança se manifesta (Banco Mundial, 2017).

Sem governança adequada é muito menos provável que os interesses identificados reflitam as necessidades dos cidadãos, as soluções propostas sejam as mais adequadas e os resultados esperados impactem positivamente a sociedade.

 

A OCDE, na mesma linha, afirma que a boa governança é um meio para atingir um fim, qual seja, identificar as necessidades dos cidadãos e ampliar os resultados esperados (OCDE, 2017).

Portanto, o conceito que será utilizado na condução da política de governança e que orientou a edição deste guia está alinhado aos entendimentos dessas duas organizações.

Se, como dito anteriormente, cada instituição pública tem um modelo de governança, como fazer com que esse modelo seja mais adequado para identificar as necessidades dos cidadãos e ampliar os resultados esperados? Quais as chaves para melhorar o processo de formulação e implementação de políticas? Por qual motivo há um descompasso entre o que a sociedade deseja e o que é efetivamente entregue pelas instituições públicas?

A resposta para essas perguntas perpassa invariavelmente pela forma de condução do processo: sem que a atuação pública seja guiada por boas práticas de governança, os fins que justificam o Estado são muito mais difíceis de serem alcançados.

 


1. LEVI-FAUR, 2012 [voltar]

2. Para uma análise da importância do Estado na definição de arranjos de governança (perspectiva centrada no Estado), ver Bell e Hindmoor (2009). [voltar]

3. Não é incomum que a perspectiva do setor privado em relação à governança (governança corporativa) seja confundida com a perspectiva da administração pública (governança pública). Note-se, no entanto, que os princípios, objetivos e métodos que orientam o primeiro são, no geral, distintos dos que se observam na seara pública. Embora haja elementos de conexão, que alimentam possibilidades de diálogo, os modelos de governança corporativa não podem ser livremente incorporados na administração pública. [voltar]

4. “[...] governance is the process through which state and nonstate actors interact to design and implement policies within a given set of formal and informal rules that shape and are shaped by power”. [voltar]

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